Por: Jamylle Bezerra
Uma espécie de ave natural da região de Mata Atlântica nordestina, em especial dos estados de Alagoas e Pernambuco, está prestes a entrar em extinção e desaparecer definitivamente. Com apenas quatro exemplares existentes atualmente, sendo dois casais que habitam a Estação Ecológica de Murici-AL, a choquinha-de-alagoas (Myrmotherula snowi) é mais uma vítima do desmatamento histórico promovido pelo homem.
Ave de pequeno porte, medindo cerca de 9,5 cm, insetívora, e pesando aproximadamente 9 gramas, a choquinha foi deixando, aos poucos, de ser vista no seu habitat natural. Levantamento feito pela Save Brasil e pelo Parque das Aves mostra o declínio populacional desse pássaro. Entre os anos de 2016 e 2017, havia 18 exemplares da choquinha-de-alagoas. Em 2022/2023, esse número caiu para 6. Neste ano de 2024, a previsão é que existam na natureza somente 4 unidades da espécie, que não é mais vista no estado de Pernambuco.
A busca pelo pássaro, inclusive, ocorreu em todos os lugares onde já houve, em algum momento, registro da espécie, assim como em outros potenciais ambientes. Sem êxito. Os pesquisadores atribuem seu declínio ao desmatamento histórico generalizado nos dois estados, mas há também outras questões, como as populações elevadas de predadores de ninhos, como cuícas e cobras.
Os especialistas da Save Brasil e do Parque das Aves, que monitoram a choquinha-de-alagoas, destacam que, mesmo dentro da Estação Ecológica de Murici, local onde hoje em dia não se tem mais o desmatamento da floresta, a espécie não está segura, pois a unidade de conservação nunca chegou a ser regularizada. Dos cinco ninhos encontrados e monitorados pela equipe, quatro falharam, a maioria por causa da predação.
“A choquinha-de-alagoas é mais uma vítima do desmatamento em massa e da degradação florestal que vem ocorrendo historicamente em toda a Mata Atlântica, especialmente no Nordeste”, afirma Hermínio Vilela, biólogo da Save Brasil e primeiro autor do artigo científico publicado no último mês de abril que mostra a iminência de desaparecimento da ave.
O município de Murici, situado na Região Metropolitana de Maceió, inclusive, consta na lista dos dez mais desmatados de Alagoas ao longo dos anos, conforme levantamento do MapBiomas. Ele mostra que, em todas as regiões do estado, foram desmatados, somente no ano passado, 307,67 hectares de vegetação, um aumento significativo quando comparado com o ano anterior, quando foi registrado desmatamento de 121,01 hectares. Em cinco anos, foram 660,77 hectares destruídos pelo homem em Alagoas.
PESQUISAS
De acordo com Hermínio Vilela, a busca por informações a respeito da choquinha-de-alagoas teve início em 2016, quando foi feito o primeiro levantamento populacional da espécie. Dois anos depois, o objetivo dos trabalhos foi entender quais as características da vegetação que atraíam o animal, fazendo com que ele escolhesse determinados locais como habitat. O resultado da pesquisa apontou como preferenciais para esses bichos os pontos com árvores altas e próximos a riachos.
Mas o que levou a choquinha a quase desaparecer da natureza? O biólogo ressalta o desmatamento ocorrido no passado, que fez com que ocorresse a perda do habitat. “Só manter a floresta em pé, não é suficiente para preservar as espécies, e a choquinha é um exemplo disso, porque a gente já está desde 2016 fazendo o monitoramento da espécie e sabemos que, desde os anos 2000, já não existe mais corte de floresta na região. Então, podemos dizer que o desmatamento parou, pelo menos desde os anos 2000. Em outras palavras, a floresta está de pé, mas isso não é suficiente para preservar o bicho, considerando que chegamos a esse fatídico número de quatro indivíduos, o que é muito triste e tenso ao mesmo tempo”, conta Hermínio.
Ele destaca que, além da ação humana, há também os efeitos da própria natureza, que vão modificando todo o ambiente. “Tem o efeito de borda, que é uma região que é mais afetada pelo vento, e tem as regiões com menor umidade, que vão alterando as características da floresta ao longo dos anos, mudando a composição dela e, consequentemente, a composição dos animais. Ou seja, ao longo dos anos, algumas espécies vão desaparecendo, algumas plantas que são de ambiente mais seco vão ficando mais predominantes e aquelas que têm característica mais únicas, vão ficando mais raras, assim como também ocorre com os animais. Aqueles que dependem de plantas mais específicas, vão sumindo”, fala.
Os trabalhos voltados à choquinha-de-alagoas continuaram em 2020, quando foi iniciada uma pesquisa para tentar entender os aspectos locais, momentâneos, que estão atrapalhando a existência do animal na floresta. O que se observou foi, justamente, a predação de ninhos. Ou seja, as choquinhas estão reproduzindo, mas outros animais nativos, como cuícas [um marsupial que vive em árvores] e cobras, estão comendo os ovos deixados pela ave, o que é um processo natural.
Mas o que chama atenção nesse caso, é a grande população de cuícas na Estação Ecológica de Murici-AL. “Lá, tem uma população grande de cuícas, o que a gente não esperaria de um ambiente em equilíbrio, um ambiente que tem todos os predadores, todas as estruturas florestais, todas as funções ecossistêmicas funcionando normalmente. Há um desequilíbrio. Apesar de ser um lugar muito conservado, alguns predadores de topo, como onça, gatos selvagens, gato do mato, cobras grandes [como surucucu], praticamente não existem na região. Essa seria uma causa local, uma causa micro, que pode estar contribuindo para o desaparecimento da espécie.
Há ainda a questão dos inseticidas usados no passado, quando a região de Murici era predominantemente dominada por plantações de cana-de-açúcar. O uso de agrotóxicos – que eram espalhados pelo vento após serem jogados de uma aeronave – pode ter contribuído para a diminuição da população de insetos e, consequentemente, de aves que precisam deles para se alimentar e sobreviver. Hoje, ao que tudo indica, existe um equilíbrio da população de insetos na área de Murici, mas estamos pagando o preço dos erros cometidos no passado.
Monitoramento é reforçado no período reprodutivo da espécie
O monitoramento da choquinha-de-alagoas é feito durante todos os períodos do ano, mas na época reprodutiva da espécie, que ocorre de setembro a março, ele é intensificado. Geralmente, essa ave coloca dois ovos por vez e, junto com eles, surge a esperança de perpetuação da espécie.
O monitoramento se dá por meio de uma busca ativa, onde o bicho é procurado por especialistas nos territórios onde ele geralmente habita, fazendo uso da “voz da ave”, uma gravação do canto que, quando ecoa em meio à floresta, o animal da mesma espécie que estiver no local responde como uma forma de defesa de território. E o que tem se observado nessas buscas é que, nos territórios antigos, não está sendo mais observada a ocupação de choquinhas. Além desse artifício do som do canto, os estudiosos também utilizam gravadores autônomos, para captar a vocalização das aves em meio à mata, e câmeras para monitoramento de ninhos.
CATIVEIRO
A manutenção da espécie em cativeiro poderia ser uma tentativa de evitar a extinção, mas os estudos nesse sentido ainda são muito recentes e estão sendo realizados pelo Parque das Aves, uma instituição focada na conservação de aves da Mata Atlântica, que fica situada no estado do Paraná.
“Eles estão com outras aves que têm hábitos parecidos com os da choquinha, criando em cativeiro, sob responsabilidade humana. O ideal era que houvesse mais conhecimento sobre isso para tentarmos fazer com a própria choquinha, mas por enquanto, é algo arriscado tirá-las da natureza e levá-las para cativeiro, porque as chances delas sobreviverem presas são menores do que se permanecerem na natureza”, destaca Hermínio.
Hermínio explica que, o fato de a choquinha ser insetívora, mantê-la em cativeiro fica muito complicado. “Fica difícil saber, de fato, o que ela precisa”, diz o biólogo, ressaltando que a choquinha-de-alagoas nunca foi alvo de caça, por não chamar muita atenção, nem pela beleza das cores e nem pelo canto. “O macho é cinza e a fêmea é cinza com marrom. Já o canto é do tipo que chamamos de monossilábico”, afirma.
Ele diz que a Estação Ecológica de Murici é uma das mais importantes para a biodiversidade no Nordeste, que abriga muitas espécies que ‘só existem lá’. “Além de ser o último local de ocorrência da choquinha-de-alagoas, é o único lar da jararaca-de-murici, de anfíbios raros e endêmicos, de invertebrados e plantas únicos. Precisamos cuidar dessa área para proteger todo esse patrimônio natural”.
Mesmo após várias extinções, Murici continua sendo um local com grande número de aves criticamente em perigo de extinção no país. Lá, estão outras 16 espécies de animais e plantas que não são encontradas em nenhum outro lugar do mundo.
Embora o futuro da choquinha-de-alagoas não pareça promissor, a equipe de estudiosos promete lutar até o fim para que a espécie não desapareça. “Já perdemos o limpa-folha-do-nordeste, o gritador-do-nordeste e o caburé-de-pernambuco. O mutum-de-alagoas possui uma população sob cuidados humanos, mas está extinto na natureza. Sabemos que as chances são pequenas, mas não podemos abandonar a choquinha-de-alagoas”, diz Pedro Develey, da Save Brasil e coautor do estudo.
*Redação com Gazeta web