Por:Márcio Resende
Às 15 horas de Madri (10 da manhã em Brasília), a ex-primeira-dama argentina, Fabiola Yañez, estará no consulado argentino na capital espanhola para uma declaração à Justiça, através de audiência virtual para o processo penal por violência de gênero contra o ex-presidente Alberto Fernández (2019-2023).
Desde o final do mandato do seu ex-marido, em 10 de dezembro passado, Fabiola Yañez vive na Espanha numa espécie de refúgio do ambiente tóxico no qual se tornou para ela a vida na Argentina, controlada pelo ex-presidente.
Na declaração por zoom desta terça-feira, Yañez dará informações precisas como nomes, datas e locais ao Ministério Público que comprovem as denúncias descritas um dia antes através de uma declaração escrita à qual a RFI teve acesso.
Ao longo de 20 páginas, Fabiola Yañez pede que os atos de violência com lesões leves sejam classificados como “lesões graves, duplamente agravadas pelo vínculo e cometidas no contexto de violência de gênero com abuso de poder e de autoridade”, além de incluir a acusação de “ameaças coativas” contra o ex-presidente, quem tem promovido um “terrorismo psicológico” com constante “assédio telefônico com mensagens intimidatórias”.
“Esclareço que os tipos de lesões são de índole grave porque deixaram sequelas de danos psicológicos que me impediram de exercer as minhas funções e a minha vida normal por mais de 30 dias”, sublinha.
“O maltrato (assédio, desprezo, agressões, golpes) era uma constante que, por uso frequente, deixou-me sequelas de caráter psicológico que me obrigaram, em diferentes períodos de tempo, a tratamentos psicológicos e psiquiátricos, inclusive com medicamentos. Tudo isso somado a lesões físicas que podem ser vistas nas fotos em anexo no braço e no olho e a outras situações como socos quase diários no contexto de violência verbal que terminavam habitualmente num soco para acabar com a discussão, apesar de o meu filho de apenas dois anos ou menos estar próximo”, introduz Fabiola Añez na sua declaração.
Violência Reprodutiva
No seu relato, Fabiola Yañez revela que Alberto Fernández a “empurrou para cometer um aborto” porque “ele não estava pronto” para ser pai. Episódios como esse, desconhecidos para os argentinos, deixaram-lhe traumas psicológicos, classificados como “violência reprodutiva”.
A figura jurídica da “violência reprodutiva” é uma forma de violência de gênero em atos que “limitam ou que coagem uma pessoa em relação à sua capacidade reprodutiva, afetando a sua autonomia sobre decisões fundamentais como de ter filhos ou não”.
“Comecei um namoro com o denunciado, no princípio sem convivência, há mais de 14 anos. Numa viagem a Paris, em 14 de maio de 2016, ele me propôs um compromisso”, conta Fabiola, esclarecendo que “antes mesmo da convivência, o assédio psicológico era constante”.
“Eu devia permanecer atenta às suas chamadas telefônicas que se repetiam a ponto de eu não poder interagir com terceiros e ter uma vida normal, como sair com amigas porque eu tinha de responder às suas mensagens a cada três minutos”, descreve para justificar que, por isso, “deixou de sair e de ver os amigos”.
“(Alberto Fernández) tinha uma obsessão: se eu saísse era porque eu o enganava. O insólito disso era que, enquanto eu ficava em casa com uma amiga para ele saciar a sua sede de controle, ele saía para estar com outras mulheres; o que eu descobri no final”, compara.
“Em virtude dos planos de compromisso e confiando na sua palavra de querer ter um filho comigo e de formar uma família, pouco tempo depois fiquei grávida. A minha alegria e a minha surpresa eram imensas. Até que eu contei a ele”, recorda Fabiola sobre o período traumatizante no qual “apareceu o desprezo e a rejeição de Alberto Fernández em relação ao nosso filho por nascer”.
“Isto não pode acontecer. Estou em choque”, foram as palavras de Fernández, segundo o relato de Fabiola.
“Ele começou a me atacar, dizendo que era muito cedo, que ele ainda não estava pronto”, continuou.
“Então, começou a segunda parte do seu plano de desprezo para me empurrar a tomar a pior decisão. Ele começou a ignorar-me por completo. Não falava comigo. Passei a ser um móvel no meu próprio lar, carregando o filho dele no meu ventre”, relembra.
“Ele me dizia: ‘não posso contar a ninguém que terei um filho com você em tão pouco tempo’ e ‘é preciso resolver isso. Você tem de abortar’. Era tal perversão que ele contou ao filho dele (filho de Alberto Fernández de um anterior casamento) que eu estava grávida para depois me culpar pelo aborto”, revive Fabiola.
“Assim, caí numa das mais graves formas de violência, a reprodutiva, já que, através das suas ações e das suas omissões (silêncio, abandono, desprezo e acusações) vulnerou a minha autoestima até destruir o meu livre direito reprodutivo, por meio de coação, levando-me a tomar a terrível decisão de abortar o meu filho, gerando-me, assim, graves danos psicológicos e emocionais até hoje”, acusa.
Tratamento psiquiátrico
Fabiola Añez conta que, devastada, decidiu se mudar sozinha. Poucos meses depois, partiria a Londres. Enquanto isso, Alberto Fernández assumia o papel de vítima, prometendo que tudo mudaria. Em dezembro do mesmo ano, ela regressou sob a promessa de casamento -que nunca aconteceu formalmente- e de ter um filho.
“Porém, como no princípio, voltou o assédio e a perseguição constante. Paralelamente, eu recebia mensagens de muitas mulheres que me diziam ter uma história íntima com ele, que as negava. Uma dessas pessoas é quem administrava a comunicação dele”, retrata.
Deprimida, angustiada e culpada, Fabiola procurou ajuda psicológica através de contatos do denunciado.
“Deram-me um diagnóstico pelo qual me indicaram um tratamento psiquiátrico e começaram a me medicar com diversas drogas. Também participava de grupos de terapia com outras mulheres com outras patologias. Eu sentia que me mantinham medicada como uma forma de me controlarem e que a intenção dele era me fazer sentir que o problema era eu, que eram coisas da minha cabeça, que eu estava louca”, avalia.
Violência física
O episódio de violência física que veio à tona na quinta-feira passada (8) comoveu o país. Os argentinos viram duas fotos com marcas da suposta violência machista: o olho direito com uma mancha preta e o braço direito, na altura da axila, com marcas roxas.
Fabiola Añez agora descreve as circunstâncias que levaram àquelas marcas no corpo. Esse episódio também expõe o médico presidencial, quem teria sabido do delito, mas ficou calado, comportamento que pode levar à acusação de cumplicidade.
“O soco no olho aconteceu na cama em Olivos (residência presidencial no município de Olivos). Tínhamos discutido muito, como já era habitual e, para acabar com a discussão, ele me bateu, virando do seu lado da cama para o meu com um soco terrível. Gritei: ‘o que você me fez?!’, mas ele não disse nada. Virou e, com esse soco, terminou a discussão”, revela.
Fabiola já estava grávida do filho Francisco, que nasceria em abril de 2022, penúltimo ano do mandato presidencial. A gravidez não impediu que os episódios de violência física continuassem.
No princípio, o olho ficou apenas vermelho, mas, depois de três ou de quatro dias, a intensidade da cor aumentou até chegar ao ponto registrado pela foto.
“Chamamos o Dr. Federico Saavedra, chefe da Unidade Médica Presidencial, quem me deu glóbulos de arnica (planta usada no tratamento de inflamações). Fui obrigada a não sair de casa para que ninguém me visse”, aponta.
Violência doméstica
“Vivi muito maltrato psicológico. Alberto Fernández falava em cima das minhas palavras. Fazia-me calar com desprezo, com violência. Empurrava-me para eu entrar ou para eu sair dos lugares. Sacudia-me. Pegava-me com força pelo braço. Humilhava-me na frente de qualquer um. Agarrava a minha cara num movimento para me silenciar. Andava na minha frente como se eu não estivesse ali, mesmo estando grávida”, enumera.
Quanto à imagem do braço com marcas roxas, Fabiola conta que aconteceu no dia em que ela disse que queria ir embora.
“Eu não aguentava mais. Insistia que queria ir embora. Vinha suportando maltrato físico. Inclusive no final da gravidez, ele costumava me empurrar muito. Se eu me sentasse segurando a minha cabeça ou a minha barriga porque não aguentava aquele maltrato, ele gritava na minha cara”, indica.
Já em 2023, um celular antigo de Alberto Fernández era usado para o pequeno Francisco assistir algum desenho animado ou para ouvir alguma canção. Certo dia, Fabiola encontrou o filho vendo imagens de uma mulher nua.
“Era de uma das tantas mulheres famosas que o visitavam. Tinha vários vídeos que ele não tinha apagado antes de dar o celular ao nosso filho. Diante da minha reclamação, ele me pegou forte para que me ficasse bem claro que se fazia o que ele dizia e que era melhor eu ficar calada”, afirma Fabiola.
Socos diários
À medida que o mandato presidencial chegava ao fim, Alberto Fernández ficava mais nervoso, conta Fabiola.
“Eu lhe dizia que não viveria mais na Argentina. Queria preservar o meu filho do assédio. Não queria essa vida para o meu filho. Foi quando começaram os socos diários”, revela.
“Nos últimos meses do mandato e diante da minha insistência por ir embora, começou a seguinte rotina: de noite, ele gritava e me dava uma bofetada que me deixava com a cara fervendo. Eu ia andando para a casa de hóspedes (casa contígua à residência oficial), enquanto ouvia os gritos. No terceiro ou no quarto dia seguido em que ele me bateu, eu me mudei à casa de hóspedes com o meu filho e trouxe a minha mãe. Tinha medo dele. Ele batia na porta aos gritos. Eu não tinha paz”, narra Fabiola.
Violência Institucional
Fabiola Añez recorre à figura da violência institucional para ilustrar a desproporcional relação de forças entre ela e quem exercia a presidência do país, usando o peso do cargo como fonte de ameaça.
“Ele abusava do poder e do cargo para me submeter, para me vulnerar e para me silenciar, exercendo violência inclusive quando eu estava grávida do seu próprio filho”, garante.
Em 14 de julho de 2020, a Argentina vivia aquela que seria a mais extensa e estrita quarentena do mundo no contexto da pandemia de covid-19. Porém, enquanto os argentinos estavam confinados, proibidos até de se despedirem dos seus parentes, vítimas do coronavírus, o casal presidencial dava uma festinha na residência oficial, por ocasião do aniversário de Fabiola Añez.
Em agosto de 2021, dois meses antes das eleições legislativas, a “Festa de Olivos” foi descoberta. No princípio, Alberto Fernández negou, mas quando surgiram fotos e vídeos, culpou a sua “querida Fabiola por organizar uma festa que não devia”. Fabiola ficou calada, assumindo, tacitamente, a culpa. Agora, conta que o jantar de aniversário não foi ideia dela, acusada de ser também a culpada pela derrota eleitoral.
“Sofri terrorismo psicológico constantemente, sobretudo depois das imagens do jantar do meu aniversário em Olivos, aumentando depois da derrota nas eleições legislativas, segundo ele, por minha culpa. Isso era diariamente. Eu não tinha respiro nem quando estava com o meu bebê. Era vítima de violência de gênero em casa e responsabilizada, inclusive pelos funcionários do governo, pela derrota nas eleições, quando todos sabiam que tinham perdido por outros motivos”, desabafa.
A violência de gênero institucional, segundo Fabiola, incluía a secretária de Alberto Fernández. María Cantero, e a ministra das Mulheres, Ayelen Mesina, a quem a vítima acudiu com relatos e com fotos, mas foi ignorada.
“Uma vez, fomos ao Brasil. Neste país e no mundo, éramos referentes por ter um Ministério da Mulher. Eu mostrei à ministra a foto (das marcas da violência no corpo) e vídeos de Alberto com outra mulher, tendo relações na Casa Rosada. Ela não fez nada”, lamenta Fabiola.
Alberto Fernández fez inúmeros discursos contra a violência de gênero e dizia-se o mais feminista de todos os homens, enquanto, em casa, violentava a mulher.
Desde que se mudou à Espanha, Fabiola diz viver sob o assédio e as ameaças até que, há uma semana, no dia 6 de agosto, decidiu denunciar Alberto Fernández, quem, apesar da ordem judicial para cessar com qualquer tipo de assédio, continuou a tentar, em vão, que a ex-mulher retirasse a denúncia e que, em conjunto, emitissem uma nota.
GE-AL