A revelação de que o Ministério Público Federal em Curitiba criou um sistema clandestino para compartilhar informações que deveriam ser mantidas sob sigilo tem potencial para anular todos os acordos de delação premiada celebrados pela Lava Jato.
“É gravíssimo”, diz o advogado Antonio Francisco Basto, que representou diversos réus da Lava Jato na 13a. Vara Federal de Curitiba. Seu cliente mais famoso é Alberto Youssef, um dos primeiros presos da força-tarefa.
Youssef é citado em uma conversa dos procuradores que começa em 20 de julho de 2016. Na época, o acordo de delação de Youssef tinha sido homologado pelo então relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), Teori Zavascki.
Mas, segundo o advogado, os anexos não tinham sido liberados para investigação de primeira instância.
No entanto, os procuradores já sabiam do seu conteúdo e a usaram para apurar um caso que envolvia um deputado (com foro privilegiado, portanto) e que hoje é um dos políticos mais poderosos da república, Arthur Lira, presidente da Câmara.
De acordo com as mensagens acessadas por Walter Delgatti Neto e encontradas no seu notebook, durante a Operação Spoofing, o procurador de nome Paulo pergunta:
– Alguém aqui está acompanhando investigação da CÂMARA & VASCONCELOS?
Câmara & Vasconcelos era a empresa que deu dinheiro para um dos três empresários que compraram o avião que caiu em Santos no ano de 2014, em que estava o então candidato a presidente, Eduardo Campos.
O nome do empresário é João Carlos Lyra Pessoa de Mello Filho, que seria um agiota em Pernambuco. Outros Liras, sem o y, também estavam envolvidos na história, segundo um anexo da delação de Youssef que era mantido sob sigilo no STF.
De acordo com esse anexo, Arthur, atual presidente da Câmara, e seu pai, o senador Benedito Lira, ambos do PP, tinham dívidas de campanha contraídas com o suposto agiota.
Segundo Youssef, Benedito Lira deu ordem para que ele, operador do partido, transferisse R$ 100 mil para a conta da Câmara & Vasconcelos.
A empresa fez, então, o repasse ao suposto agiota, seu verdadeiro controlador, que pagou pelo avião usado por Eduardo Campos.
Nesse caso, tão grave quanto a triangulação financeira é o que os procuradores da Lava Jato estavam fazendo. O Sisdelatio era um banco de dados com delações que não poderiam ser compartilhadas.
Além disso, ainda que o anexo de Youssef estivesse liberado para investigação, procuradores de primeira instância não poderiam usá-la para no caso de políticos com foro privilegiado.
Em resposta ao colega Paulo, o procurador Andrey Mendonça faz um resumo do caso:
– A câmara vasconcelos tá envolvida com pgtos pros lira em bsb [sigla de Brasília (já teve denúncia pelo PGR)] e no caso do aviao do eduardo campos q caiu. Houve deflagracao de operacao , q acho q rodrigo telles ta cuidando, em que houve a morte do dono da empresa. Nao sei de outras frentes envolvendo a empresa.
Os procuradores discutem outras delações e, no dia 26, a procuradora Jerusa Burmann Viecili adverte os colegas para tomar cuidado com o banco de dados clandestino, o Sisdelatio, numa aparente confissão de ilegalidade no sistema.
“People, cuidado ao usar o sisdelatio: há termos que estão no sistema mas não baixaram formalmente do STF!”. diz.
Ou seja, os procuradores de primeira instância não poderiam ter acesso a esses termos, de acordo com a lei 12.850/2013, que determina sigilo dos depoimentos obtidos em acordo de delação até que a denúncia seja recebida por um magistrado.
“O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese”, disse o advogado Gustavo Badaró em entrevista ao Conjur.
“O acesso era só para o procurador da República que atuava no caso, ou para os integrantes da força-tarefa responsável pelo caso. Mas não poderia ter compartilhamento, por exemplo, com MPs de outros estados. Nem com outros membros do MPF que não integrassem a força-tarefa”, acrescentou.
Assim como Figueiredo Basto, Badaró entende que o compartilhamento indevido por levar à anulação dos acordos. A existência do Sisdelatio é um fato de extrema gravidade e pode ser uma prova da corrupção judicial da Lava Jato.
Talvez seja por isso que os atuais integrantes do Ministério Público Federal em Curitiba tenham negado a existência do sistema.
“Não existe, no Ministério Público Federal, sistema com essa denominação e/ou finalidade”, afirmou a Procuradoria da República do Paraná em nota.
“Já tentamos confirmar, mas ninguém se lembra de um sistema com esse nome, nem localizamos nenhum registro”, informou o órgão.
Uma investigação pode revelar que o Ministério Público não fala a verdade ou que os antigos integrantes da Lava Jato tenham destruído provas, apagando os registros do Sisdetatio. Nesse caso, teria havido crime de obstrução de justiça.
No próprio chat encontrado pela Operação Spoofing, os procuradores revelam o nome de um dos técnicos que abasteciam o sistema. É Rafael Sasaki, cujo Linkedin informa: “Analista de Informática at Ministério Público Federal”. Sasaki trabalha no órgão desde outubro de 2006. Atualmente, está lotado em Brasília.
Se quiser encontrar a verdade, a Corregedoria do MPF pode tomar o depoimento de Sasaki. Ou, havendo provocação, o Conselho Nacional do Ministério Público pode fazer a investigação. Talvez a própria Polícia Federal possa entrar no caso, a depender de autorização de tribunais regionais.
O procurador Paulo é quem cita Sasaki e elogia o sistema. “Pessoal, quem é responsável por alimentar o sisdelatio, como ficou isso? vi que temos mtos depoimentos que não estão lá. O próprio sasaki está fazendo isso aos poucos? (apesar disso, top o sistema)”
Os procuradores Andrey e Paulo falam várias vezes sobre termos de delação encontrados no sistema, e o que chama mais a atenção é que estavam focados na família Lira.
“Esses pgtos do lira envolveram prc e ay”, diz Andrey. PRC é Paulo Roberto Costa e AY é Alberto Youssef.
“O ay pagou o lira por meio da camara (a empresa do susposto agiota). Talvez ela esteja envolvida na transposicao do sao francisco. Ela pagava pra empresas de fachada. Mas posso estar errado”, comenta Andrey.
Paulo, por sua vez, revela que encontrou no banco de dados anexos que não tinham sido liberados pelo Supremo. “Tem os anexos antigos, achei no sisdelatio… mas só coisa q subiu e não desceu”, disse.
O interesse dos procuradores da Lava Jato na primeira instância é mais do que suspeito, é ilegal, e pode ser a brecha que as instituições democráticas brasileiras precisam para comprovar que a força-tarefa de Curitiba, que teve Sergio Moro como seu grande líder, foi, na verdade, uma política secreta, como a Stasi, na extinta Alemanha Oriental, ou a CIA, nos Estados Unidos.
A pergunta que não quer calar: O que os lavatistas faziam com informações que não podiam usar em processos judiciais regulares?
Redação com Brasil 247
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