José Tolentino de Mendonça (o nome que assina como poeta) tem um sonho e um desígnio: que a Biblioteca e o Arquivo do Vaticano sejam lugares de “memória” e de conhecimento coletivo: dos que creem e dos que duvidam, dos de fé e dos ateus, dos que não sabem ler nem escrever.
O Cardeal Tolentino, como é mais conhecido, é um homem simples com uma rica visão do mundo, uns dirão cristã, outros portuguesa: é tímido, não compreende as selfies que todos os jornalistas querem tirar ao seu lado. Sorri, envergonhado. Mesmo com todo o poder que exerce junto de Francisco – no Vaticano todos sabem que é o cardeal português que o Papa mais ouve.
A minha avó materna era analfabeta e foi ela a minha primeira biblioteca. Por isso, eu sinto que a minha missão aqui é também representar os que não sabem ler.
Quando nos explica, no seminário para jornalistas “O Vaticano por dentro e in loco“, que decorreu em Roma, na Universidade Pontifícia de Santa Cruz, o que é, afinal, a Biblioteca Apostólica Vaticana e o Arquivo Apostólico Vaticano, vem-nos à lembrança José Saramago, o único Nobel português da Literatura – um ateu. Tolentino também o lembrou, mesmo antes de dizer o seu nome, aliás, quase uma hora antes de citar “Todos os Nomes”, uma obra (prima) do escritor português.
Em 1998, quando recebeu o Nobel, em Estocolmo, Saramago, vestido de capote alentejano, dedicou o prémio aos seus avós – Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha, “analfabetos um e outro”. Disse mais: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”.
“A minha avó, analfabeta, foi a minha primeira biblioteca”
Quando o Papa Francisco escolheu o então Capelão da Igreja do Rato, em Lisboa, para ser o responsável pelos milhares de livros e documentos guardados no arquivo do Vaticano, Tolentino, lembrou também, no seu discurso de posse, as suas raízes, em Machico, na Madeira. Disse: “A minha avó materna era analfabeta e foi ela a minha primeira biblioteca. Por isso, eu sinto que a minha missão aqui é também representar os que não sabem ler”. Explicou: “Foi ela quem me introduziu na literatura oral, porque a literatura não é só a escrita, a literatura oral é património riquíssimo e a que damos pouco valor. A minha missão é também representar os que não sabem ler”, insistiu.
(para Maria Matias, minha avó)
É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome
Eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece
e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor.
(Mulher Desconhecida, José Tolentino de Mendonça)
Foi em 1998 que José Tolentino de Mendonça, então padre e vice-reitor da Universidade Católica, para além de capelão, foi ordenado arcebispo para poder assumir as atuais funções. Um ano mais tarde, em 2019, foi ordenado Cardeal. Já antes tinha orientado o retiro quaresmal do Papa – foi o primeiro português a fazê-lo, mais uma prova da sua influência junto de Francisco.
Fala-nos, deslumbrado, dos tesouros que guarda. Hesita. “Como posso descrever esta grande máquina que é a biblioteca? É de facto um corpo anómalo dentro das bibliotecas: é única pela sua beleza, é única pelo património que conserva, mas é única também pela visão que transporta”, diz o Cardeal português.
É uma biblioteca organizada em línguas: é uma biblioteca latina, não só em latim, mas em todas as línguas latinas – o português está na biblioteca latina -, é uma biblioteca grega, e não só o clássico, mas todas as outras línguas a oriente, “é verdadeiramente uma biblioteca universal; universal no sentido que recolhe tudo aquilo que tem a ver com a diversidade do mundo, da diversidade das línguas, das formas de expressão, e é universal também porque segue aquela máxima do velho Terêncio que dizia ‘tudo aquilo que é humano nos interessa'”.
As bibliotecas são muito perigosas, é por isso que muitas bibliotecas no século XX foram bombardeadas, queimadas.
Lembra-se quando a visitaram as comunidades indígenas do Canadá que vieram ter um encontro com o Papa. “Este é só um exemplo: recebemos praticamente todos os meses pedidos de diversas comunidades, de povos que são muito pequenos e estão à procura da sua memória, perguntam se temos gramáticas, se temos textos nas suas línguas, se temos algum documento que fale da sua existência e normalmente nós temos”.
Na Biblioteca do Vaticano, pode encontrar-se de tudo, das vozes mais submersas – “porque as vozes dos derrotados são as menos escutadas” -, até ao autógrafo de um autor absolutamente desconhecido, que depois se vai revelar importante para contar a história de uma comunidade.
“As bibliotecas são muito perigosas”
O Cardeal Tolentino é poeta, não nos esqueçamos. Cada frase sua seria uma bela muleta para quem escreve. Como esta: “Uma biblioteca tem sempre de conter muitos mundos dentro”. Mas o Cardeal português está ciente, como representante da Igreja Católica e da própria História, do poder da memória.
“As bibliotecas são muito perigosas, é por isso que muitas bibliotecas no século XX foram bombardeadas, queimadas, por isso é que quando um país invade o outro a primeira bomba é para a biblioteca e para o arquivo. Porque sem essas estruturas há uma afirmação de identidade que não se pode mais afirmar”, descreve. Por exemplo, na Segunda Guerra Mundial, a queima de livros fez parte da política de genocídio cultural que os nazis tentaram levar a cabo nos territórios ocupados.
(A onda de destruição de livros mais conhecida da Alemanha Nazi foi a que começou no dia 10 de maio de 1933, quando associações de estudantes universitários queimaram, em 34 cidades, mais de 25 mil obras consideradas pouco alemãs, de autores judeus, esquerdistas ou que de alguma forma punham em causa os princípios do nazismo).
Um bunker e um quartel de bombeiros ao lado
“É difícil dizer qual é [a secção] mais preciosa: somos uma biblioteca de manuscritos, a igreja possui o maior acervo de literatura manuscrita e este acervo compreende textos que têm a ver com as escrituras – temos algumas das versões mais antigas e mais credíveis em relação aos textos bíblicos”.
A igreja possui o maior acervo de literatura manuscrita.
Na Biblioteca e Arquivo do Vaticano estão guardados 80 mil manuscritos, conservados num bunker onde a temperatura, a luz e a estabilidade são monitorizadas ao pormenor. A companhia de bombeiros do Vaticano está situada ao lado das duas instituições propositadamente. “Todas as noites, o último ser humano que passa pelo arquivo e biblioteca é um bombeiro”, revela o Cardeal.
O acervo do Vaticano conta ainda com cerca de um milhão e 600 mil livros impressos e cerca de um milhão são livros impressos até ao seculo XVIII.
Assim que tomou posse, Tolentino confessou ter sentido a curiosidade de tentar saber como a Biblioteca do Vaticano espelha a imagem de Portugal. E ficou espantado. “É um país muito diferente da imagem psicológica que nós temos de Portugal. A ideia que nós interiorizámos é a de um país na cauda da Europa, um país com dificuldade em afirmar-se internacionalmente, um país sem dimensão para ser país, para comandar, para trazer novidade e de facto na aventura da modernidade, naquela grande globalização que as Descobertas representaram, a potência científica – não é apenas o ouro e a prata que Portugal tinha – essa potência científica de Portugal é uma coisa verdadeiramente extraordinária e nós não temos essa perceção”, revela.
A biblioteca não é apenas a cereja em cima de um bolo inofensivo, é o lugar vital para pensar a identidade de um povo, de um país, de uma civilização.
As moedas não mentem…
Do espólio do Vaticano faz ainda parte um medalheiro que é parte integrante do património da biblioteca. Os peregrinos que vinham a Roma, não era na Fontana di Trevi que deixavam a moeda, mas sim junto ao túmulo de Pedro. E essas moedas contam uma história… “O responsável do medalheiro diz, com humor: ‘Eminência, as moedas não mentem, os livros às vezes mentem, mas as moedas não mentem’. Porque contam a história de se há mais metal, se há menos metal, se há mais prata, ali se percebem os tempos de fome, de prosperidade…”, descreve o Cardeal.
Não, a biblioteca não é filha de um Deus menor, ou como diz o Cardeal Tolentino, “a biblioteca não é apenas a cereja em cima de um bolo inofensivo, é o lugar vital para pensar a identidade de um povo, de um país, de uma civilização”, sublinha.
Porque o objetivo dos livros e documentos que ali se guardam não é acumular pó ou fazer figura. “Uma biblioteca serve para contar a história da Humanidade”.
Através dela podemos reconstruir a história dos indivíduos – “é impressionante ver aqueles quilómetros e quilómetros de estantes com documentos, aquele labirinto que é o Vaticano”, que hoje é procurada não apenas por historiadores – interessa a todos: “É a história da pessoa, da família”, afirma o nosso português no Vaticano.
O segundo Papa português?
Tolentino é o sexto cardeal português do século XXI e o terceiro Cardeal Eleitor português, o que significa que também pode vir a ser eleito Papa num futuro conclave para escolher o sucessor de Francisco. Por isso, as vozes em surdina – não só portuguesas – que além de o desejarem como o próximo Chefe da Igreja Católica, consideram que essa pode mesmo vir a tornar-se uma realidade. Afinal, até aos dias de hoje, só existiu um Papa português, Pedro Julião, também conhecido como Pedro Hispano, coroado como papa João XXI em setembro de 1276.
Quando investiu José Tolentino de Mendonça cardeal, em 2019, o Papa sublinhou a sua faceta de poeta. “Foi interessante, quando ele se abeirou de mim, eu disse-lhe baixinho: ‘Santo Padre, o que é que me fez?’ E ele riu-se e disse: ‘olha, a ti eu digo aquilo que um poeta disse, ‘tu és a poesia”. Foram palavras que eu guardo no meu coração, no fundo para dizer uma coisa essencial, que a Igreja conta com uma determinada sensibilidade, uma atenção a um determinado campo humano, que é o campo da cultura, das artes, da estética”, disse Tolentino aos jornalistas.
A verdade é que o poder do cardeal poeta no Vaticano está a crescer. Uma das mudanças que se esperam já para o próximo mês é a nomeação de José Tolentino Mendonça como o futuro responsável do novo Dicastério para a Cultura e a Educação. A nomeação do “nosso” cardeal pode acontecer ainda antes do consistório e da reunião dos cardeais, previstos para final de agosto.
O passo seguinte será o lugar mais próximo de Deus? Para o historiador Christopher Bellitto, antes de se pensar num sucessor para Francisco – que o estudioso acredita que irá mesmo renunciar – nada acontecerá antes de Bento XVI morrer: “Ele não vai permitir que existam dois ex-Papas por aí”, disse Bellitto à Associated Press.
“Todos os Nomes”
“Estamos a comemorar os 100 anos de José Saramago, o nosso Nobel, e um dos seus livros mais belos, Todos os Nomes, é a história de um arquivista típico do tempo da Ditadura, era um mangas de alpaca, que trabalhava numa conservatória”, descreve o Cardeal, para logo acrescentar: “Era uma vida sem glória e a vida daquele homem transforma-se e torna-se matéria de romance quando ele percebe que no arquivo ele pode salvar vidas. Se salvarmos uma memória, salvamos uma vida. Uma bela definição de arquivo e biblioteca pode ser o título do romance de Saramago que é dizer que [a biblioteca] é o lugar onde estão Todos os Nomes”.
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