Colunista Andrea Dip
Quando vim a Berlim pela primeira vez, em 2015, fiquei muito impressionada em como a cidade não escondia sua história. A cada canto há um monumento às vítimas do Holocausto, um museu que conta as atrocidades cometidas pelos nazistas, ou as impactantes Stolpersteine – pequenas placas de metal dispostas no chão das ruas, com informações pessoais de judeus que foram raptados, perseguidos ou mortos na região.
Impactante pra mim também por motivos pessoais. Meus avós sobreviveram ao Holocausto e fugiram para o Brasil, mas o que viveram os traumatizou tanto que eles se negaram, até o fim de suas vidas, a contar detalhes do que experienciaram.
Como não convivi com eles, em nossos poucos encontros tentava pinçar uma ou outra informação, algo que me desse uma pista desse passado sombrio.
Sabia que havia uma bala alojada em algum lugar no corpo do meu avô e conseguia ver pedaços da tatuagem com o número que recebeu no campo de concentração em seu braço.
Fora isso, recebi apenas respostas evasivas endossadas por parentes que me puxavam de lado: “eles não querem lembrar”.
Por isso a exposição visceral da vergonha alemã em Berlim me confortava.
“Nie wieder” repetem os alemães a cada oportunidade. Nunca mais algo assim vai acontecer.
Mas enquanto a memória é essencial para que atrocidades não se repitam, a culpa é um sentimento complexo, já mostrava Freud, porque tem a ver com desejo, conflito, recalque, remorso mas também neurose.
Isso sem entrar na questão da manipulação da culpa enquanto ferramenta de controle social, dos corpos, das ideias etc. que dá um outro caldeirão inteiro.
Fato é que culpa pelo Holocausto se desenvolveu de várias maneiras na subjetividade da sociedade alemã.
Por um lado, essa memória viva criou de fato consciência social e serviu como base para a implementação de vários mecanismos para barrar a volta do fascismo.
Por outro, a culpa criou linhas de raciocínio bastante complexas e problemáticas.
Um exemplo que tem gritado atualmente é o apoio incondicional do governo alemão mas também de parte da imprensa e da coletividade ao Estado de Israel e às políticas genocidas de Benjamin Netanyahu sobre a Palestina.
O simples falar sobre isso é muitas vezes tabu, gera desconforto, acaba com conversas.
É como se fosse um dever dos alemães, por causa das barbáries cometidas contra o povo judeu, apoiar cegamente o Estado de Israel e, por consequência, as políticas de Netanyahu.
Existem inclusive na Alemanha leis e resoluções que visam combater o antisseminismo – muito válidas e importantes – que têm sido distorcidas e usadas atualmente como base para prender, punir com violência, invadir centros culturais e acabar com manifestações pró Palestina.
Tudo isso sob o raciocínio simplista e binário de que se alguém é pró Palestina é automaticamente antissemita. E vale dizer que para a comunidade internacional que apoia Netanyahu, mesmo judeus que são contra sua ações podem ser considerados antissemitas.
As imagens da polícia socando um homem idoso no rosto e espremendo pessoas dentro de um trem em Berlim durante uma manifestação nesta segunda-feira (11) são horripilantes.
Não vou incluir os vídeos aqui por respeito aos manifestantes, mas eles foram amplamente divulgados nas redes sociais.
O ato, que aconteceu em protesto às mortes planejadas de 5 jornalistas da Al Jazeera em Gaza pelo exército israelense, foi brutalmente coibido pela polícia.
E isso tem acontecido frequentemente. Assim como acadêmicos perdendo fundos de pesquisa, artistas perdendo financiamentos e vistos, tendo shows e exibições canceladas, tudo porque se manifestaram contra os crimes na Palestina.
Enquanto isso, o país é o segundo maior exportador de armas para Israel. Entre o início da guerra e meados de maio deste ano, a Alemanha aprovou a exportação de equipamentos militares para Israel no valor de 485 milhões de euros, de acordo com a Reuters.
Agora, quando Netanyahu anuncia seu “ato final”, ou como ele declarou em coletiva à imprensa no último domingo 10, seu plano de “terminar o trabalho” e assumir o controle da Cidade de Gaza, a Alemanha decidiu suspender as exportações de armas à Israel.
Agora, sobre os corpos de mais de 60 mil pessoas, incluindo crianças que morreram de uma fome provocada, profissionais de saúde, jornalistas, sobre os cadáveres de animais, sobre um território reduzido a ruínas, a Alemanha acha que já deu.
Mas não apenas a Alemanha. Após mais de 20 meses de um massacre acontecendo diante dos olhos do mundo, governos como o da França, Reino Unido, Canadá, Austrália e Portugal anunciaram que avaliam reconhecer a Palestina como um Estado na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) que acontecerá em setembro.
As perguntas feitas pelo jornalista palestino Ramzy Baroud seguem ecoando: Quantos devem morrer até que o ocidente reconheça esse genocídio? Qual é o limite? Tem um número?
Parece que o limite é a promessa da aniquilação total de um povo.
Não para todos, claro. Os Estados Unidos seguem apoiando Israel em seu plano de destruição.
Mas cabe a nós jornalistas que não fomos assassinados por Israel, ativistas, professores, estudantes, artistas, e quem se importa com o curso da história em geral, não esquecermos de todos os Governos que foram e estão sendo cúmplices do genocídio cometido por Israel em Gaza.
Assim como a Alemanha fez e faz com seu passado nazista.
Porque se o ‘Nunca mais’ não valer para outros povos, em todos os tempos, ele não é promessa — é memória seletiva.
Redação C/ ICL Notícias
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