Anadia/AL

4 de novembro de 2024

Anadia/AL, 4 de novembro de 2024

As cruéis lembranças e esperançosos sonhos das pessoas que estavam em situação de rua no Rio

ABN - Alagoas Brasil Noticias

Em 20 de janeiro de 2024

rua

Cristiane Maria, Rodrigo Souza e Rubens Aguiar estão no programa Seguir em Frente da prefeitura do Rio — Foto: Beatriz Orle

✨ Por Felipe Grinberg 

Duas décadas após ficar em situação de rua, pela primeira vez Rubens Aguiar se sente protagonista de sua história. Rodrigo Souza, que carrega a marca da fome na memória, quer se tornar um espelho para quem está nas ruas. Cristiane Maria sonha em se profissionalizar na área de beleza, mas não se esquece dos pesadelos que enfrentou. Os três vivem na unidade de acolhimento Dona Ivone Lara, em Cascadura, Zona Norte do Rio e fazem parte do programa Seguir em Frente, da prefeitura do Rio. Desde o fim de 2023, a ação já atendeu 840 pessoas. Conheça as histórias de Rubens, Rodrigo e Cristiane:

‘A rua é cruel com todos, não existe bondade’, diz Rubens

Rubens Aguiar, de 60 anos — Foto: Beatriz Orle
Rubens Aguiar, de 60 anos — Foto: Beatriz Orle

“Até completar esses 60 anos que tenho, já passei por diversas dificuldades. Houve uma tragédia na minha vida. Era casado com Vera Lúcia e morávamos em São João de Meriti, na Baixada Fluminense e eu trabalhava com pintura em Petrópolis, na região Serrana. Por isso, passava somente os fins de semana em casa. Um dia, há uns 20 anos, quando cheguei em casa, ela me chamou para conversar e avisou que minha mãe havia falecido. Ela já tinha sido sepultada. Na segunda-feira viajei ao trabalho. Dias depois, quando voltei, toquei a campainha e ninguém atendeu: minha companheira também havia morrido.

Ao perder meus alicerces, me vi num vácuo. Botei roupas e documentos numa mochila e saí. Passei a trabalhar como catador. Não tinha o hábito de beber, mas na rua a facilidade da bebida alcoólica e droga é grande, principalmente na maloca. A maloca é como chamamos onde há uma concentração de moradores de rua, onde fazem a comida e bebemos. Mas o problema só aumentava.

Lembro de dois episódios que presenciei assassinatos brutais na rua e aquilo me marcou muito. Uma vez estava dormindo no Centro do Rio e ouvi a galera correndo. Quando percebi, jogaram uma pedra grande na cabeça de outra pessoa e ela estava no chão sangrando. A rua é cruel com todos. Não existe bondade.

Decidi parar de beber quando me vi numa situação muito ruim. Estava arrumado e limpo, e, de repente, acordei no meio de uma obra dormindo em uma manilha todo sujo de lama. E me apeguei ainda mais com os livros. Tudo que vejo leio: meu grau de escolaridade não é alto, mas o de conhecimento sim.

Em 2022 fui para um abrigo da prefeitura, em Realengo, na Zona Oeste do Rio. Fiquei alguns meses lá, onde fui muito bem tratado e conseguiram fazer a ponte para um emprego de carteira assinada. Logo que recebi o primeiro salário aluguei um quarto, mas só fiquei por dois meses. Por uma doença, fui afastado e não tinha como pagar o aluguel.

Voltei para a mochila. Senti um terror em ter que voltar para a rua. Fui para a praça da Cruz Vermelha, onde conheci esse programa da prefeitura. Agora eles estão me ajudando a remarcar a perícia do INSS.

Aqui tenho um atendimento psicológico necessário, eu tenho dentista, meu quarto onde durmo na minha cama cheirosa, com minhas cobertas. Agora quero voltar a trabalhar e continuar com minha autonomia”.

‘Quero me ressocializar em todas as áreas ‘, diz Cristiane

Cristiane Maria, de 40 anos — Foto: Beatriz Orle
Cristiane Maria, de 40 anos — Foto: Beatriz Orle

“Estou com 40 anos. Me mudei para uma comunidade em Quintino, mas acabei me envolvendo com uma pessoa que não foi legal. Sofri violência e saí para não acontecer o pior. Tenho medo de virar uma estatística. Sempre tive, agora muito mais, depois de tudo que passei. Fiquei um tempo em casas de amigos, perdida, sem saber para onde ir ou o que fazer. E fui para a rua em meados de 2023.

As primeiras noites procurei fazer amizade para ter segurança de onde dormir. A rua é cruel, você não pode estar com nada. Ainda pode ser espancada, violentada. Para as mulheres não tem onde fazer uma higiene. Conheci a fome, frio, sede e o medo noturno. Vi brigas, tragédias como tentativas de assassinato. Na rua, um cigarro é motivo de morte.

As drogas e o álcool circulam na rua. A pessoa te seduz com isso para você viver gastando. Você vira refém do vício. Infelizmente, a realidade é essa. Te proporcionam para você se apegar. Na carreata pela quentinha, muitas vezes não dá para todos comerem. Vem a esperança de comer e acaba. Você fica triste, chora pensando quando será sua próxima alimentação. Quando não tomava nem o café já vinha o desespero.

Vi que tinham aberto esse abrigo e eu falei assim: “poxa, é uma ótima oportunidade para mim”. Vim primeiro procurar uma amiga moradora de rua e acabei ficando. Cheguei na véspera de Natal totalmente deprimida. Agora vou me inscrever em um curso também, além do estágio. Vou organizar tudo direitinho após pegar a documentação e também fazer o tratamento dentário.

Quero me ressocializar em todas as áreas. Ter minha casa, minha vida mesmo. E me profissionalizar na área da beleza.”

“Espero ser espelho para quem está na mesma situação que a gente”, diz Rodrigo

Rodrigo Souza, de 37 anos — Foto: Beatriz Orle
Rodrigo Souza, de 37 anos — Foto: Beatriz Orle

“Tenho 37 anos. Minha infância foi conturbada. Minha mãe deixou o marido quando ele matou um irmão meu ainda bebê. Eu devia ter uns 3 anos. Ela ainda foi estuprada quando eu era criança. Depois fui adotado por uma família pouco tempo depois e comecei uma nova trajetória. Mas chamar outra pessoa de mãe não era fácil para mim.

Comecei a beber com 15 anos, quando trabalhava como office boy no Centro. E quando comecei a trabalhar com eventos de noite, conheci as drogas. Minha ida na rua não foi de supetão, não teve um dia específico. Mas não tinha aquele uso abusivo, diário. Tinha dias que eu usava para não sentir fome.

Comecei a trabalhar com alguns bicos, como vender balas. Dava meu jeito para comprar o leite do meu filho, que mora com a mãe. Para não dormir na rua, muitas vezes ia até o aeroporto onde tinha ar-condicionado, água e segurança. Mas no réveillon de 2022 me senti a pior pessoa do mundo. Não consegui trabalho ou ajuda e tive que beber água gelada para enganar o estômago. E isso enquanto via as famílias recepcionando as pessoas no saguão para passar a virada. A sociedade olha quem tá na rua e pensa que não presta mais. Mas quando precisa tirar um entulho de casa, vai lá e oferece R$ 15, tentando te explorar.

Eu já tinha idealizado um programa como esse. Já fiz de tudo nessa vida e quando cheguei aqui em Cascadura logo me candidatei para trabalhar no estágio. Eu mesmo fiz minha vassoura sustentável.

Agora quero alugar minha casa e fazer um curso de gastronomia. Espero ser espelho para quem está na mesma situação que a gente”

✨ Redação com Extra Online

Galeria de Imagens