Por: Raquel Landim e Cristina Fibe
A executiva Carolina Ragazzi, 37 anos, decidiu romper o silêncio sobre um drama que aflige milhares de mulheres quando retornam do trabalho após terem filhos: o assédio moral.
O caso é ainda mais emblemático porque ela atuava no mercado de fusões e aquisições de empresas, um dos ramos mais restritos, bem pagos, exigentes e dominados por homens do país. E trabalhava para um dos maiores bancos do mundo — o Goldman Sachs.
Numa carreira de sucesso, em que foi de estagiária a vice-presidente, Ragazzi atuou como assessora financeira nos principais negócios de compra e venda de empresas e ofertas de ações do ramo de varejo.
Hoje, mãe de três crianças, ela conta em entrevista exclusiva a Universa que tudo começou a mudar depois do nascimento de sua primeira filha.
Ragazzi relata que passou a receber críticas dos colegas por fazer parte do trabalho de casa para participar da rotina dos filhos, que foi excluída pela chefia de projetos importantes na volta da licença-maternidade, que se tornou alvo de chacota em grupos de WhatsApp, que foi preterida em promoções e que viu sua remuneração cair.
Fez seguidas denúncias informais à chefia sem reação. Até que adoeceu com depressão e crises de pânico. O banco, em nota à reportagem, nega todas as acusações.
Pouco a pouco, fui sendo minada, excluída das rodas de decisão. Fui tendo meu poder esvaziado, obviamente, com o tempo isso afetou minha remuneração. Mas tudo foi acontecendo de forma muito gradativa. Não foi da água para o vinho. Na maior parte das vezes, havia um discurso que isoladamente parecia fazer sentido. Mais para frente eu fui descobrindo que era mentira, foi ficando recorrente. Sempre era uma manipulação brutal.
Carolina Ragazzi, ex-vice-presidente do GoldmanSachs
Mulheres no mercado
Nascida em Fortaleza, Ragazzi veio para São Paulo para estudar administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2005. Logo depois de formada, ingressou como estagiária no segmento de fusões e aquisições do banco Santander.
Seu desempenho logo atraiu o interesse do Goldman Sachs, que buscava se destacar no competitivo mercado brasileiro de compra e venda de empresas.
Entrou como associada em junho de 2011 e, em dezembro de 2016, já havia chegado a vice-presidente e chefe da área de varejo. No Goldman Sachs, os chefes de área recebiam o cargo de vice-presidentes.
Ainda nessa época começou a perceber o quanto o mercado era dominado por homens e que as informações não circulavam entre as mulheres, o que torna mais difícil para elas ter acesso aos melhores negócios.
Em conjunto com outras duas mulheres que atuam com finanças, formou o grupo “Mulheres no mercado”. Hoje são cerca de 200 executivas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. O número, por enquanto, é restrito para limitar o acesso às informações que por lá circulam.
Bullying no estacionamento
Casada há cinco anos, Ragazzi decidiu ser mãe em 2017, logo ao ser promovida a vice-presidente. Ela conta que se sentia pronta para formar uma família e que tinha confiança na sua competência na carreira.
Os problemas começaram na volta da primeira licença- maternidade.
Colegas passaram a criticá-la por retornar para casa às 19 horas para colocar a filha para dormir e depois seguir trabalhando remotamente. No mercado de fusões e aquisições, é comum um número exaustivo de horas trabalhadas. A jornada dos executivos, incluindo a de Ragazzi, chegava a 100 horas semanais.
Segundo ela, outros executivos passaram a excluí-la de reuniões com clientes e a não dividir informações sobre os projetos.
Já com muitos anos de banco, ela parava o seu carro sempre na mesma vaga. Um dia, chegou e alguém havia parado no mesmo lugar. Quando questionou o manobrista sobre o que havia acontecido, teve a seguinte resposta: “Dona, esse sujeito não gosta muito de você. Disse que a senhora vai perder a vaga e o emprego.”
Ragazzi afirma que contou o episódio ao chefe direto e chegou a pedir demissão. Conforme o seu relato, o superior pediu que ela ficasse e afirmou que ela seria “blindada”.
Excluída por amamentar
Especialista na área de varejo, a executiva esteve envolvida nas principais operações do ramo no país. Segundo a consultoria KPMG, as fusões e aquisições atingiram seu ápice no varejo em 2021, quando chegaram a 104 operações.
Ela relata que, ao retornar da licença-maternidade do segundo filho em 2019, descobriu que havia sido excluída de uma grande operação daquela área. Ao questionar seu chefe sobre o assunto, ouviu dele que não seria bom para ela fazer parte do projeto, porque estava amamentando.
A resposta dele foi como se fosse protetiva para mim. Ele disse que eu conhecia bem o cliente e que eles não respeitam nosso fuso horário e marcam as reuniões para seis da manhã e que não me faria bem, porque eu estava voltando de licença. Eu insisti, falei que ele me conhecia, que sou pau para toda obra, que aquele projeto era vital para a minha promoção. Aí ele mudou a narrativa.
Carolina Ragazzi, ex-vice-presidente do GoldmanSachs
Segundo ela, o chefe alegou que o negócio estava quase fechado e que precisava dela em outros projetos. A executiva alega que os outros negócios eram menos relevantes, que o time havia sido formado há menos de um mês e que o “deal” só foi selado oito meses depois.
Prêmio de “inutilidade”
A reportagem teve acesso a troca de mensagens entre funcionários do banco Goldman Sachs em 2021, que foram entregues à executiva por colegas. Nelas, Ragazzi é chamada de “gata gorda” por supostamente trabalhar pouco, e os colegas zombam de sua remuneração menor que a dos demais.

O assédio chegou ao ápice em agosto de 2022. Naquela época, Ragazzi conta que precisou levar uma roupa extra para um de seus filhos na escola por conta de um escape no desfralde e que entrou numa reunião remotamente.
Sem saber que ela estava no call, os executivos passaram a criticá-la por supostamente ter perdido um contrato. Na versão da executiva, o Goldman Sachs ficou em segundo lugar e só não levou o negócio porque cobrou uma comissão alta do cliente. Seu chefe, que sabia do ocorrido, não a teria defendido.
Um dos colegas me pintou de péssimo exemplo de banqueira e que teríamos perdido o mandato por incompetência minha. Eu não acreditava no que estava ouvindo e fiquei ansiosa para que meu chefe, que sabia exatamente o motivo, me defendesse. Ele sabia que era mentira, mas aquela defesa não vinha, não vinha. Eu fiquei muda. Não consegui falar nada. Nesse dia, tive minha primeira crise de pânico.
Carolina Ragazzi, ex-vice-presidente do GoldmanSachs
Ragazzi ficou afastada em licença médica por alguns meses. No seu retorno, protocolou uma denúncia formal no banco, com documentos que comprovariam suas acusações. Aguardou por meses uma resposta.
Na reunião para a avaliação de sua denúncia, foi demitida nos primeiros minutos. Ela afirma que o Goldman Sachs teria reconhecido a falta de diversidade e o ambiente agressivo, mas afirmado que as mulheres seriam mais suscetíveis a ele.
Outro lado
Procurado por Universa, o Goldman Sachs alega que as acusações de Ragazzi são “falsas”.
“No Goldman Sachs, temos políticas generosas de licença para apoiar nossos funcionários em diversos momentos importantes da vida e não toleramos qualquer forma de retaliação contra um colaborador que faça uso dessas licenças. Contestamos veementemente essas alegações, que são falsas. Não seria apropriado comentar as circunstâncias específicas ou o desempenho de um funcionário em particular”, disse o banco por meio de nota.
Ação coletiva milionária
A denúncia de Ragazzi não é caso isolado. Em 2023, o Goldman Sachs gastou US$ 215 milhões para encerrar uma ação coletiva nos Estados Unidos que acusava a empresa de preconceito generalizado contra as mulheres no pagamento e nas promoções.
O processo, iniciado em 2010 por duas ex-executivas do banco, acabou abrangendo 2.800 mulheres associadas e vice-presidentes que trabalharam nas unidades de banco de investimento, gestão de investimentos e valores mobiliários. A ação figura, até hoje, entre os casos de maior destaque sobre o tratamento desigual de mulheres em Wall Street.
No Reino Unido, o Goldman Sachs figura entre os bancos de investimento com maior desigualdade salarial entre os gêneros. Em 2023, o pagamento médio por hora das mulheres era 54% menor do que o dos homens. Outro problema está nas promoções: embora haja um aumento de contratações de mulheres para cargos baixos, os dados revelam dificuldades para promover e reter mulheres nos cargos mais bem pagos.
Para a advogada especializada em gênero Mayra Cotta, “no mercado financeiro, a ascensão de algumas poucas mulheres à liderança convive com jornadas exaustivas, culturas de hipercompetitividade e a invisibilidade completa das demandas de cuidados assumidas por quem se torna mãe”.
“O que se celebra, quase sempre, é a mulher que conseguiu performar como se não tivesse filhos — ou que pôde pagar para que outra mulher cuidasse deles”, afirma Cotta.
Por muito tempo, a imagem da mulher poderosa que vence no mundo corporativo — a executiva implacável, a girl boss, a líder que ‘exige seu lugar à mesa’ — foi vendida como símbolo de igualdade no trabalho. Mas não demorou para que ficasse claro o limite desse imaginário. Porque nenhuma mulher, por mais brilhante que seja, muda sozinha estruturas profundamente desiguais. A presença de algumas mulheres no topo não garante um mundo do trabalho mais justo — especialmente quando esse topo continua sustentado pela exploração de tantas outras embaixo.
Mayra Cotta, advogada especializada em gênero
Disparidade de salários
No Brasil, os dados mostram que o mercado financeiro é o que tem maior disparidade salarial entre os gêneros. Um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Cadastro Central de Empresas (Cempre) de 2022, revelou que as mulheres ganham salários, em média, 68,7% menores do que os homens nesse setor.
Quando se tornam mães, a tendência é a situação se agravar, com menos acesso a promoções, maior disparidade salarial e, em muitos casos, a retirada dessas mulheres do mercado.
“O caso de Ragazzi ilustra bastante, com muita clareza, o preconceito contra a maternidade que existe em absolutamente todas as empresas — algumas com mais força do que outras, mas que é uma realidade para todas as mães que estão no mercado de trabalho”, afirma Maíra Liguori, cofundadora da consultoria Think Eva e presidente da ONG Think Olga.
“Entendo que o fato de ela estar numa posição de poder, e num setor que movimenta muito dinheiro e é liderado por homens, tenha tornado isso tudo ainda mais difícil.”
Liguori acrescenta que as áreas que são muito masculinas ou têm grande concentração de dinheiro e poder costumam “ter esse nível de misoginia tremendo, especialmente quando falamos de mães”.
“Essa executiva que teve coragem de falar e apontar esse problema está fazendo isso por ela, mas também está apoiando muitas outras que não podem falar, porque não conseguem ou porque a vida delas depende disso, o sustento da família depende disso? Estamos falando de um movimento que precisa ganhar corpo e força dentro das empresas para que as mães possam ser acolhidas e entendidas nas suas necessidades.”
Questionada por Universa sobre os motivos que a haviam levado a contar sua história, Ragazzi respondeu:
Tenho rede de apoio, estabilidade financeira, e um conjunto de provas que me dá segurança para fazer isso e enfrentar alguma retaliação. Quantas mulheres reúnem o que eu tenho? Poucas. Por isso não julgo ninguém que passou por isso e não falou. Ainda assim, sinto medo, angústia e ansiedade para saber se de fato estou no caminho certo. Por isso vejo como, apesar de tudo, um presente do universo ter os ingredientes que são necessários para eu agora, talvez, conseguir fazer a diferença na vida de outras mulheres.
Carolina Ragazzi, ex-vice-presidente do GoldmanSachs
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