
Um levantamento do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) coloca Alagoas entre os piores cenários do país, ao lado de Acre, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro — este último com uma fila que já alcança 1.424 dias. A disparidade é evidente quando comparada ao Ceará, onde a espera média não chega a dois meses: 58 dias.
A baixa oferta de procedimentos em Alagoas ajuda a explicar o problema. Entre 2015 e julho de 2025, foram realizados apenas 866 transplantes de córnea, um dos índices mais baixos do Brasil. No mesmo período, São Paulo registrou 52.913 cirurgias.
O quadro estadual reflete ainda uma tendência nacional: segundo o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), o tempo médio de espera no Brasil mais que dobrou em dez anos — de 174 dias em 2015 para 374 em 2024. Apenas no primeiro semestre deste ano, a média já era de 369 dias.
No 69º Congresso Brasileiro de Oftalmologia, em Curitiba (PR), especialistas apontaram as razões para o agravamento da fila: valores defasados pagos pelos procedimentos, dificuldades na manutenção dos bancos de olhos e o impacto da pandemia de covid-19 entre 2020 e 2023.
Estrutura limitada
Para Vitor, o subfinanciamento dos bancos de olhos compromete a qualidade e a eficiência do serviço, tornando inviável a preservação adequada das córneas doadas.
“Preservar uma córnea custa mais do que o repasse que recebemos para todo o processo. O meio de preservação, por exemplo, é importado e cotado em dólar. A inflação fez com que esse custo superasse o valor total recebido, que inclui profissionais e estrutura para viabilizar o transplante”, explicou.
Apesar disso, ele ressalta que o maior entrave em Alagoas não é a logística do procedimento — que permite a captação do tecido até seis horas após o óbito e a preservação por até 14 dias —, mas sim a baixa taxa de doações. Segundo o médico, a ausência de equipes intra-hospitalares capacitadas para a abordagem familiar dificulta a autorização.
“Não é por falta de equipe técnica para captação. Temos profissionais treinados. O problema é a ausência de pessoas responsáveis por conversar com as famílias. Mesmo que o paciente tenha manifestado vontade de doar, a autorização da família após a morte ainda é obrigatória”, destacou.
Entre os mais afetados estão pacientes com doenças como ceratocone e idosos que perderam a transparência da córnea. Muitos esperam anos sem acompanhamento contínuo.
“Hoje, o Hospital Universitário (HU) concentra praticamente todos os atendimentos do SUS em transplante de córnea no estado. Isso sobrecarrega o sistema. Quando o paciente finalmente é chamado, pode já não ter mais indicação para o transplante, ter perdido a função de outras estruturas oculares ou até ter falecido”, lamentou o oftalmologista.
Em Alagoas, recursos não são entrave, mas recusa familiar limita transplantes
A coordenadora da Central de Transplantes de Alagoas, Daniela Ramos, reconhece o desafio e reforça que a fila extensa é reflexo de uma demanda acumulada.
“Hoje, Alagoas está com uma lista de 564 pessoas aguardando por uma córnea, número que reflete ainda uma demanda acumulada pós-pandemia. Ressaltamos que o transplante só acontece com a autorização familiar”, afirmou.
Segundo ela, há tendência de crescimento nos procedimentos. “O transplante de córneas vem aumentando anualmente, porém, ainda precisamos de mais conscientização da população, pois somente a família autoriza a doação de órgãos e tecidos”, disse.
Daniela destacou que o Banco de Olhos do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes é credenciado pelo Ministério da Saúde e atende dentro dos critérios exigidos. Também citou iniciativas para reduzir a fila.
“O ano de 2024 já mostrou um aumento expressivo de transplantes, porém, a lista de espera ainda é a maior do estado, não do país. Temos projetos de aproximação com as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e o Instituto Médico Legal (IML) para tentar reverter a situação”.
Diferente da avaliação feita em âmbito nacional, a coordenadora afirma que o financiamento não tem sido um entrave em Alagoas.
“Nada nos foi relatado pelas equipes de transplantes em relação aos recursos. Os transplantes de córneas continuam acontecendo. O maior gargalo ainda é a recusa familiar”, reforçou.
Realidade dura em Alagoas
A oftalmologista Andrea Santos, do Banco de Olhos da Universidade Federal de Alagoas, aponta que a escassez de profissionais é um dos principais entraves.
“Em Alagoas contamos com poucos profissionais capacitados. Apesar de formações periódicas, poucos permanecem atuando. Outra dificuldade está no diagnóstico frequente de sepse em potenciais doadores. A negativa familiar também ainda é um grande empecilho”, afirmou.
Ela lembra que o perfil dos pacientes traz impactos severos. Muitos idosos sofrem com a ceratopatia bolhosa, doença que provoca dores, sensação de corpo estranho constante e perda da transparência da córnea, impedindo a visão. Esse quadro compromete de forma significativa a vida cotidiana dessas pessoas.
Já o ceratocone, comum em crianças e jovens, compromete a visão, provoca evasão escolar e dificulta a inserção no mercado de trabalho.
Andrea defende que o exemplo do Ceará mostra que é possível mudar a realidade com investimentos adequados.
“Ceará é um grande exemplo por ter zerado e mantido a fila de espera. Foi fruto de trabalho contínuo de um grupo do setor privado em parceria com o IML e a Secretaria Estadual de Saúde”, disse.
Para ela, a prioridade deve ser a formação de equipes permanentes: “Investir em profissionais dedicados seria a iniciativa mais importante. Hoje, muitos atuam em outras funções e não conseguem se dedicar integralmente às doações. Além disso, campanhas midiáticas ajudam a reduzir a negativa familiar”.
Conscientização é chave
As médicas Theresa Ferro e Ana Gameleira, da Sociedade Alagoana de Oftalmologia, reforçam que a baixa taxa de doações é hoje o maior desafio.
“Temos um grande número de pacientes adicionados à fila mensalmente em Alagoas, em parte pelo aumento de especialistas em córnea que identificam casos recuperáveis. Ações do Estado devem ser constantes, desmistificando ideias errôneas que as famílias possam ter sobre a doação de órgãos”, afirmaram.
Segundo elas, os impactos da fila vão além da visão. “O maior impacto é a cegueira, mas alguns pacientes também sentem dor, o que leva a uma queda drástica na qualidade de vida. Jovens com ceratocone avançado sofrem atraso escolar e laboral, prejudicando seu futuro”, explicaram.
Para as médicas, o ponto central é tornar a conversa sobre doação mais natural dentro das famílias.
“Só a família é capaz de autorizar a doação na hora do óbito. Não adianta querer doar e não explicar isso aos seus familiares. Se o assunto se tornar corriqueiro, a chance de lembrança no momento do falecimento é maior.”
O que pode ser feito?
Vitor reforça que a fila extensa não é exclusividade de Alagoas e defende uma política pública nacional que promova a equidade no acesso.
“Estados como Ceará, São Paulo e agora o Pará são exemplos de sucesso porque investiram em captação de córneas dentro de hospitais, IMLs e Serviços de Verificação de Óbito (SVO). Isso fez a diferença”, destacou.
Diante do cenário preocupante, ele defende medidas práticas e bem direcionadas para melhorar o acesso ao transplante.
“Precisamos ampliar a atuação de equipes especializadas em captação, especialmente em hospitais estratégicos. É o primeiro passo para garantir que pessoas que hoje esperam há três anos por uma nova córnea possam, finalmente, voltar a enxergar”, finaliza.
Redação com Cada Minuto
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