Em meio às tensões comerciais entre Brasil e Estados Unidos, intensificadas pela decisão do governo Trump de impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, o movimento que se seguiu nos dias seguintes à carta divulgada pelo presidente estadunidense pegou muita gente de surpresa, quando a United States Trade Representative (USTR, ou Departamento Comercial dos EUA) incluiu o anúncio de uma investigação sobre o que foi chamado de “práticas ilegais” por parte do Brasil. Entre os alvos, estão o ataque ao pioneiro Pix e o combate à pirataria, e um tema que revela um claro – e antigo – incômodo dos Estados Unidos: o etanol brasileiro.
O principal motivo da investida do governo Trump contra o etanol brasileiro vem de longe: a alíquota de 18% aplicada pelo Brasil à importação do etanol americano, feito de milho dos EUA – o que resulta em mais emissão de CO2 do que o registrado pelo biocombustível brasileiro, produzido majoritariamente a partir da cana-de-açúcar. Essa tarifa, no entanto, não é arbitrária: ela cumpre papel estratégico ao garantir condições mínimas de competição justa entre o etanol brasileiro e o etanol estadunidense, que é fortemente subsidiado por Washington. A eventual retirada dessa barreira resultaria em uma verdadeira invasão do etanol americano no mercado nacional, comprometendo a competitividade das usinas brasileiras, pressionando margens, eliminando empregos e desestimulando investimentos.
A cadeia do etanol é uma das maiores forças produtivas do Brasil, resultado de exatos 50 anos de políticas públicas, inovação tecnológica e compromisso com a sustentabilidade. Desde a criação do Programa Pró-Álcool, em 1975, o país desenvolveu um modelo reconhecido mundialmente de biocombustível limpo, culminando na liderança em mobilidade de baixo carbono e na consolidação da tecnologia flex. De 2003 até hoje, a combinação entre o uso de etanol hidratado e a mistura obrigatória de etanol anidro na gasolina evitou a emissão de mais de 730 milhões de toneladas de CO₂ equivalente — volume comparável às emissões anuais de países como a Indonésia.
Além do impacto ambiental, o setor é crucial para a economia brasileira. Segundo dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), a produção nacional de etanol atingiu 36,8 bilhões de litros em 2024, tornando o Brasil o segundo maior produtor mundial, atrás apenas dos EUA. A cadeia produtiva emprega mais de 2,2 milhões de pessoas, sendo que só no estado de São Paulo são mais de 844 mil trabalhadores, com influência direta sobre a economia de cerca de 1,2 mil municípios.
Dessa forma, especialistas avaliam que permitir que o etanol dos Estados Unidos entre no Brasil sem uma alíquota que dê fôlego ao biocombustível produzido por aqui seria um golpe duro contra um setor que representa inovação, geração de renda, desenvolvimento regional e benefícios ambientais. Assim como o Pix, também atacado por Washington, o etanol tornou-se uma das bandeiras do protagonismo brasileiro no cenário internacional. A avaliação mais comum é que a tentativa dos EUA de sufocar essa indústria por meio de pressão comercial evidencia um movimento protecionista que ameaça não só uma cadeia produtiva consolidada, mas também o compromisso global com fontes limpas e sustentáveis de energia.
Governo Lula descarta negociar tarifa de etanol com EUA
Apesar da pressão crescente por parte dos Estados Unidos, o governo brasileiro sinaliza que não pretende ceder em relação à alíquota de 18% sobre o etanol americano. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, comandado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, afirma que a redução da tarifa não está em pauta nas atuais negociações com Washington. “Não haveria sentido levarmos essa proposta ou qualquer outra de redução de alíquotas que o Brasil aplica na fase atual. Eles (os americanos) reivindicavam essa redução ou atribuição de cota para o etanol, mas esse tema deixou de ser debatido desde o começo das novas tarifas (os 10% que Trump aplicou sobre produtos brasileiros, em abril)”, afirmou o secretário-executivo da pasta, Márcio Elias Rosa, em entrevista ao site Platô BR.
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, também se manifestou sobre a crise comercial. Ele afirmou que o Brasil está disposto a dialogar, mas que a manutenção da alíquota de 18% sobre o etanol importado dos EUA é essencial para proteger a produção nacional, especialmente no Nordeste. “As taxas do etanol têm que ser mantidas. O equilíbrio tarifário deve considerar não só o etanol, mas também o açúcar, que sofre sobretaxas de até 90% nos EUA”, disse. Silveira reforçou ainda a confiança na condução diplomática do vice-presidente e ministro da Indústria, Geraldo Alckmin.
Em paralelo, os senadores da Comissão de Relações Exteriores do Senado estão nos Estados Unidos tentando reabrir canais de negociação antes que as tarifas entrem em vigor, na próxima sexta-feira (1). A delegação já se reuniu com empresários da Amcham e representantes na embaixada brasileira em Washington. O senador Nelsinho Trad (PSD-MS), presidente da comissão, defende a prorrogação da medida tarifária para viabilizar negociações técnicas.
No contexto da transição energética, a Petrobras também se move. A estatal avalia construir uma planta para produção de SAF (combustível sustentável de aviação) utilizando etanol derivado da cana-de-açúcar. A unidade, com capacidade para 10 mil barris por dia, deve ser instalada junto à Refinaria de Paulínia (Replan), com início previsto para 2027, quando o uso de SAF passa a ser obrigatório no Brasil. Paralelamente, a empresa desenvolve outros três projetos de SAF, com cronogramas mais avançados, a partir do coprocessamento de matérias-primas em refinarias como Cubatão, Duque de Caxias e a Refinaria Riograndense, em parceria com Braskem e Grupo Ultra.
No centro da disputa tarifária, o etanol brasileiro não é apenas um produto de exportação — é um ativo econômico, ambiental e social. Diante disso, representantes do setor e autoridades defendem que qualquer negociação com os Estados Unidos leve em conta não apenas os interesses comerciais, mas também a relevância estratégica dessa cadeia para o Brasil e para o esforço global de descarbonização.
Fonte: Brasil 247
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