
Os melhores salários do Ceará têm destino certo: a conta bancária de homens brancos. É o que mostram dados atualizados do Ministério do Trabalho e Emprego sobre o mercado de trabalho cearense.
Aqui, as mulheres negras têm, em média, 33,9% menosrendimentos em comparação com homens não negros.
Considerando o gênero feminino de forma geral, constata-se uma disparidade salarial de 10,21% inferior à remuneração masculina.
Para o levantamento, foram consideradas as empresas com 100 empregados ou mais até 31 de dezembro último.
Ao todo, foram ouvidas 1.180.894 (um milhão, cento e oitenta mil, oitocentos e noventa e quatro) pessoas. Trabalhadores informais não entram nessa estatística.
Em contraste com a remuneração média masculina de R$ 3.079,17, as mulheres registram, em média, R$ 2.764,64.
Além da disparidade de gênero, os dados revelam a desigualdade racial: mulheres negras têm rendimentos 23,95% inferiores aos de mulheres brancas, enquanto homens negros recebem 27,12% menos que seus pares não negros (ver quadro acima).
Apesar desse resultado, o Ceará se destaca como o 4º estado brasileiro e o 3º do Nordeste com a menor diferença de salários entre gêneros, considerando que a média feminina corresponde a 89,80% da masculina.
A igualdade salarial entre homens e mulheres é garantida por lei desde a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), sancionada em 1943.
No entanto, na prática, a realidade é outra, principalmente porque não havia fiscalização. Em 2023, foi criada a legislaçãonº.14.611/2023 para aplicar sanções mais duras a quem descumprir a regra.
O Diário do Nordeste questionou o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) sobre informações detalhadas acerca da fiscalização da Lei n.º 14.611/2023 implementada pela pasta, bem como sobre as ações concretas que têm sido adotadas para assegurar a efetividade da referida norma em âmbito nacional e estadual, e aguarda retorno.
Esta matéria será atualizada assim que as respostas forem enviadas.
Por que essa desigualdade persiste

A professora Celecina Veras Sales, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Gênero, Idade e Família (Negif) da Universidade Federal do Ceará (UFC), argumenta que a persistente disparidade salarial é resultado de um conjunto de fatores históricos e culturais.
“Historicamente, o mundo do trabalho apresentou essa divisão entre o público e o privado; para as mulheres, reservava-se este último espaço. Quando ingressavam no mercado, era para exercer funções ligadas ao cuidado, como professoras e enfermeiras. Isso, claro, aplicava-se às mulheres brancas, pois as negras sempre trabalharam, mas na informalidade, vendendo em tabuleiros, preparando alimentos, entre outras atividades”, explica.
Consequentemente, observa-se uma estrutura patriarcal enraizada que estabelece desigualdades entre os gêneros, manifestando-se desde a esfera educacional e reverberando no cotidiano.
Essa situação, portanto, impede a efetivação dos impactos positivos dos avanços conquistados ao longo dos anos.
Observa-se nas empresas uma predominância masculina em cargos de chefia e liderança. Embora a conquista da ampliação da licença-maternidade represente um avanço, empresas tendem a evitar a contratação de mulheres devido à possibilidade de gravidez. Portanto, apesar do ganho obtido, essa questão ainda persiste”, avalia.
Atualmente, acrescenta a pesquisadora, as mulheres conseguem ocupar mais o mercado de trabalho, mas ainda enfrentam diversas formas de violência nesse ambiente, a exemplo do assédio moral e sexual, bem como menor remuneração.
Sales enfatiza a necessidade de um conjunto articulado de políticas públicas para coibir a cultura machista em diversas esferas. Isso inclui a construção de creches e o reforço da fiscalização para assegurar a efetividade de leis antidiscriminação. Contudo, pondera, é fundamental compreender essa realidade em um contexto amplo para garantir a transformação.
“Essas questões não podem se dissociar da política, por exemplo. Recentemente, tivemos um retrocesso para as mulheres quando tivemos governos que defendiam como ideal mulheres recatadas e do lar. Ou seja, o nosso caminhar para frente retrocede devido a questões políticas”, observa.
Em 2016, a revista Veja publicou uma matéria em que descrevia a então primeira-dama, Marcela Temer, utilizando a expressão “bela, recatada e do lar”.
Essa definição gerou debate e críticas, pois foi interpretada como uma reafirmação da visão tradicional que associa o papel da mulher ao âmbito doméstico e aos cuidados familiares.
“Quantas senadoras temos, quantas políticas temos? É importante a representatividade feminina na política, no congresso, para garantirmos leis. As poucas que estão lá sofrem muita violência política de gênero. É um conjunto de violências, e isso se reflete no mundo do trabalho”, avalia.
“A questão do trabalho não é dissociada das outras questões, nem das políticas. Ainda acontece dentro de casa: quem cuida das crianças? A mulher trabalha fora, mas é ela que cuida e sofre uma sobrecarga de trabalho”, completa a pesquisadora.
A representatividade feminina no Congresso Nacional permanece baixa até os dias atuais, com apenas 91 mulheres ocupando assentos entre os 513 deputados federais e os 81 senadores.
Para a professora, a transformação dessa realidade exige a implementação de um conjunto de medidas estruturais e pedagógicas, compreendendo:
- Educação com enfoque antissexista e antirracista;
- Expansão da rede de creches;
- Fortalecimento da fiscalização para a efetivação de leis de proteção à mulher;
- Conscientização e incentivo à participação das mulheres na política e no mercado de trabalho.
Quais são os impactos dessa desigualdade para a economia

Conforme a professora Alesandra Benevides, dos cursos de Ciências Econômicas e de Finanças da UFC em Sobral, a discriminação de gênero no mercado de trabalho representa um obstáculo ao crescimento econômico.
“Estudos já demonstram que a diversidade em cargos de chefia leva a um maior crescimento da economia. Sob a perspectiva econômica, portanto, a diversidade nos cargos de liderança é de suma importância”, aponta.
“Do ponto de vista social, observa-se uma geração com potencial para superar a anterior em termos salariais; ou seja, se um indivíduo cujos pais ou cuja mãe são pretos e enfrentaram dificuldades de emprego e de remuneração consegue ascender economicamente, a sociedade se torna mais aberta”, destaca.
Para a professora, a mitigação da discriminação de gênero no mercado de trabalho requer a implementação gradual de algumas ações:
- Mudança de visão e cultural da sociedade;
- Políticas e regulamentações para combater desigualdades estruturais existentes no mercado de trabalho;
- Incentivos fiscais e creditícios para empresas que comprovem diversidade em seus quadros, sobretudo em cargos de chefia
- Monitoramento e fiscalização da Lei de Igualdade Salarial.
“Eu não cabia na CLT”

A empresária cearense Mônica Ferreira, de 39 anos, vivenciou diversas situações de racismo ao longo de seus dez anos de atuação no mercado de trabalho formal como enfermeira.
Suas experiências incluíram perseguições, a deslegitimação de sua voz e a imposição de padrões estéticos e de fala.
Eu não cabia na CLT, era um ambiente muito tóxico. Era extremamente perseguida em cargos de gestão, era muito utópico quando eu, uma mulher negra, ocupava esse lugar”, conta.
“Não havia muitas enfermeiras com o meu fenótipo. Então, meu cabelo não podia ser desse jeito, minha risada, meu jeito de falar. Se eu questionasse algo, era porque eu era barraqueira, porque as pessoas da comunidade supostamente são assim”, conta.
Mas o histórico de racismo no mercado antecede suas vivências em funções de liderança. Mônica enviava inúmeros currículos, mas não obtinha qualquer retorno.
“Mandava para os hospitais e nada. Quando tirei a minha foto, que viram apenas o meu currículo que era muito bom, me chamaram para 13 entrevistas”, relata.
Em 2019, ela voltou-se para o empreendedorismo social, fundando a Empoderar-Te, uma empresa dedicada a desenvolver soluções para mulheres em situação de vulnerabilidade social.
Ao longo de sua atuação, a empresa impactou positivamente a vida de mais de 6 mil mulheres em 28 municípios cearenses.
De acordo com a empresária, o ingresso no empreendedorismo para muitas dessas mulheres negras não representa uma escolha, mas uma resposta à necessidade econômica e à conciliação com o trabalho de cuidado não remunerado. Contudo, mesmo nesse contexto, persistem os desafios.
“Embora se discuta a disparidade no mercado de trabalho formal, é crucial destacar que o faturamento de negócios liderados por mulheres negras corresponde a apenas 60% do registrado por homens brancos”, salienta. O dado por ela mencionado é oriundo de um levantamento do Sebrae, fundamentado nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC).
Ela enfatiza a necessidade de linhas de crédito direcionadas às peculiaridades do empreendedorismo feminino negro.
Embora já se observem iniciativas nesse sentido, os modelos existentes ainda não atendem de forma abrangente às necessidades específicas dessas empreendedoras.
“Só existe inovação se houver diversidade. Se todo mundo pensar a mesma coisa, não há resultado positivo. Por isso, precisamos de políticas públicas, empresariais e fortalecimento na educação para a promoção de mulheres em cargos de liderança, para vermos essas mudanças na sociedade”, completa.
O que o Ceará está fazendo para corrigir essa assimetria
Segundo a Secretaria das Mulheres, o Governo do Ceará aumentou em R$ 62 milhões o Ceará Credi Mulher, programa em parceria entre as Secretarias das Mulheres e do Trabalho, com apoio da Adece e do IDT. Mulheres lideram a procura por crédito, representando 75% dos requerentes desde 2023, sendo 54% chefes de família.
Outra ação informada é o Selo de Equidade de Gênero e Inclusão, certificação para organizações que desenvolvem projetos de equidade, visando igualdade no trabalho em acesso, ascensão, remuneração e permanência sem discriminação.
A pasta também informou que desenvolve outros projetos para a emancipação econômica e financeira de mulheres, como o Ceará por Elas e o Prospera Mais Ceará, além de programas em parceria com o PReVio (Empodera e Emancipa).
Já a Secretaria da Igualdade Racial (Seir) informa que atua de forma transversal na promoção da equidade racial, com ações que incluem mentorias para o desenvolvimento de projetos e oficinas voltadas a empreendedores negros(as) e povos de comunidades tradicionais, como quilombolas, ciganos e povos de terreiro.
“Além disso, apoia iniciativas de fomento ao empreendedorismo, como a Feira Negra, e conta com o edital Meu Afronegócio, que busca atender a esse propósito”, afirma.
Diário do Nordeste
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